George Martin, o homem que pôs os Beatles a soar assim
George Martin, o homem que pôs os Beatles a soar assim: Assinou contrato com os ‘fab four’ e produziu e orquestrou quase todos os seus discos. “Era um segundo pai para mim”, escreveu Paul McCartney. O ‘quinto Beatle’ faleceu esta terça-feira
Os Beatles já tinham sido recusados por várias editoras quando lhes foi endereçado um convite para uma audição nos estúdios Abbey Road, em Londres. Estávamos em 1962 e o “não” mais famoso aos futuros ‘fabulosos’ fora dado pela Decca – John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Pete Best não eram, por esses dias, uma banda em estado de graça.
No número 3 de Abbey Road esperava-os George Martin, produtor com currículo feito em comedy records (Peter Sellers, por exemplo) e responsável pelo catálogo da Parlophone. O encontro deu-se com reservas de ambas as partes: se Martin, já então com 36 anos e profissional experimentado, questionava as capacidades musicais do quarteto, os jovens Beatles viam no produtor a figura paternalista de uma geração mais velha.
Quando Martin perguntou aos Beatles se alguma coisa na configuração do estúdio os desagradava, o guitarrista George Harrison – o mais novo do grupo – não se demorou na resposta: “Para já, não gosto da tua gravata.”
George Martin, que faleceu terças-feira com 90 anos, era, reconhecem quase todos os músicos que com ele trabalharam, um gentleman dotado de sentido de humor, “exemplar” improvável numa severa indústria de início dos anos 60.
E os Beatles não demorariam a assinar contrato com a Parlophone, tendo substituído entretanto o baterista Pete Best por Ringo Starr, depois de Martin ter deixado claro que o homem das baquetas que entrara em Abbey Road em junho não era capaz de tocar a contento.
Meses depois, aquando da gravação dos singles que instalaram a ‘Beatlemania’, era George Martin quem se sentava atrás da maquinaria, na sala de controlo.
A sua visão, que fez por exemplo com que a versão que conheçamos de ‘Please Please Me’ tenha sido acelerada por indicação sua, produziu resultados imediatos: os Beatles entraram de rompante nos topes. “Para um adulto, que é o que ele era, era bastante experimental”, diria mais tarde Paul McCartney.
Se Martin, pianista e arranjador de formação clássica, encontrou nos Beatles um veículo quase infalível das suas opções estéticas, os Beatles contavam com Martin como filtro da torrente criativa e elemento congregador das personalidades distintas que emergiriam. Os discos sucederam-se a ritmo acelerado, entre digressões: depois de “Please Please Me” (1963), houve nos dois anos que se seguiram “With The Beatles”, “A Hard Day’s Night”, “Beatles For Sale”, “Help!” e “Rubber Soul”, até que – após “Revolver” (1966) – os Beatles decidiram parar de dar concertos.
Começa aí uma renovada experiência de estúdio, com a música feita sobretudo por Lennon e McCartney (com valorosas, mas mais raras contribuições de George Harrison) a evoluir para paragens de maior requinte: fosse por influências da música que o grupo ouviu na Índia (nomeadamente Ravi Shankar), o psicadelismo propulsionado pelas drogas alucinogéneas e uma muito bem sustentada aspiração de fuga de um terreno puramente rock and roll, então inundado de imitações dos Beatles.
Entram em cena, devidamente amparados por George Martin, uns Beatles sedentos de experimentação em estúdio e abertos à inclusão de instrumentos e estruturas até aí pouco identificáveis com a música elétrica que, uma década antes, Elvis Presley popularizou.
Assim nasceram detalhes hoje indissociáveis de músicas que se tornariam clássicos indisputados da música popular: o solo de trompete em ‘Penny Lane’ (que McCartney assobiou, tendo sido transposto para pauta pelo produtor), as cordas impolutas de ‘Eleanor Rigby’ (uma partitura por si composta e executada magistralmente, sob inspiração da música para cinema de Bernard Herrmann), os arranjos surreais de ‘I Am The Walrus’ (metais, cordas e coro), a filigrana de ‘Strawberry Fields Forever’ (compilada a partir de takes de gravação distintos e onde encontramos um uso aturado do controlo do tom), o clímax orquestral de ‘A Day in the Life’.
Como executante, deixou a sua marca, por exemplo, no piano barroco de ‘In My Life’ e no vaudeville de ‘Lovely Rita’, no cravo que pontua ‘Fixing a Hole’ e na atmosfera circense dos órgãos de ‘For the Benefit of Mr. Kite’ – “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, o disco que define a segunda metade da carreira dos Beatles, mais ousada e experimental, teve dedo seu.
Antes, em 1964, um atipicamente inseguro McCartney encontrou em Martin a solução para uma canção que lhe estava a dar luta – e que ganhara forma, curiosamente, em Albufeira, aquando de umas férias de Paul por cá.
No texto com que homenageia o falecido produtor, Paul McCartney lembra-o: “um [dos momentos] que me vem à memória é a ocasião em que eu levei a canção ‘Yesterday’ para uma sessão de gravação e os rapazes na banda sugeriram que eu a cantasse sozinho à guitarra.
Depois de o ter feito, George disse-me: ‘Paul, que tal se pusermos aqui um quarteto de cordas?’. Eu respondi: ‘Oh não, George. Somos uma banda de rock and roll e não me parece boa ideia’. No seu jeito cordato de grande produtor, devolveu: ‘vamos tentar e se não resultar voltamos à versão a solo’. Concordei e no dia seguinte dirigi-me à casa dele para trabalhar no arranjo.
Ele levou os acordes que eu lhe mostrei e espalhou notas ao longo do piano, colocando o violoncelo na oitava baixa e o primeiro violino na oitava alta, dando-me aí a minha primeira aula sobre como deveriam ganhar voz as cordas num quarteto.
Quando gravámos em Abbey Road, fiquei tão entusiasmado por perceber que a ideia dele estava correta que andei a contar isto a toda a gente durante semanas. É óbvio que a ideia funcionou porque a canção tornou-se uma das mais gravadas de sempre, com versões de Frank Sinatra, Elvis Presley, Ray Charles, Marvin Gaye e milhentas outras”.
Martin faria ouvidos moucos à tensão crescente entre os egos da banda e não é de surpreender que “Let It Be”, o único álbum dos Beatles que por si não foi produzido (e o derradeiro da contagem oficial) é habitualmente visto como uma desilusão – na década passada McCartney levou adiante uma vontade antiga e editou uma versão livre da intervenção de Phil Spector, o produtor original.
Durante o ‘reinado’ dos Beatles, George Martin desempenhou funções de produção em gravações de Shirley Bassey (como o sucesso ‘Goldfinger’, do filme homónimo da saga James Bond), Gerry & The Pacemakers ou Cilla Black.
Após a cisão da banda, continuou próximo de Paul McCartney (os álbuns de maior sucesso deste nos anos 80 têm a sua chancela) tendo estado ligado a sucessos como ‘Live and Let Die’ (1971), ‘Ebony & Ivory’ (com Stevie Wonder, 1982), ‘Say Say Say’ (com Michael Jackson, 1983) e ‘No More Lonely Nights’ (1986).
Produziu quatro álbuns dos America, dois de Jeff Beck e ainda Cheap Trick, Ultravox e até Celine Dion. Durante os anos 70 e 80, os estúdios Air, por si geridos, foram poiso frequente de algumas das bandas mais reputadas da época.
Permaneceu relacionado com a ‘máquina’ Beatles, supervisionando a pós-produção das edições “Anthology”, de 1995, nas quais não pôde estar mais envolvido devido à perda de audição.
Em outubro desse mesmo ano, passou por Portugal (Coliseus do Porto e Lisboa) para dirigir a Orquestra Clássica do Porto num concerto intitulado “Beatles for
Peace”. Em 2006, Martin e o filho, Giles, remisturaram 80 minutos de música dos Beatles para a peça “Love”, uma coprodução do Cirque de Soleil e da Apple Corps (detida pelos membros dos Beatles e respetivos herdeiros) levada a cena em Las Vegas e que suscitou uma banda-sonora homónima no mesmo ano.
“Era como um segundo pai para mim. Guiou a carreira dos Beatles com tanta qualidade e com um bom humor tal que se tornou um verdadeiro amigo meu e da minha família. Se alguém merece a honraria de ‘quinto Beatle’, é o George.
Desde o dia em que nos deu o nosso primeiro contrato até à última vez que o vi, ele foi a pessoa mais generosa, inteligente e musical que tive o prazer de conhecer”, referiu Paul McCartney. Ringo Starr deixou condolências e agradeceu “todo o amor” mostrado por Martin. Yoko Ono, viúva de John Lennon, disse-se “abatida e incapaz de proferir muitas palavras”.
O filho destes, Sean Lennon, manifestou-se “abalado” pela notícia. O produtor Nigel Godrich (ligado aos Radiohead, mas também a um álbum de Paul McCartney) lamentou a morte do “meu herói”, o “o produtor definitivo, um cavalheiro que foi sempre tão gentil comigo.
Ele fez tudo primeiro… e melhor”. As homenagens chegaram de vários quadrantes: dos músicos e produtores Brian Eno e Mark Ronson ao ator Roger Moore (“ele fez o meu primeiro James Bond soar brilhante!”).
Nascido em Highbury, Londres, em janeiro de 1926, Martin cresceu numa família com ligações à música: o seu tio trabalhava para uma empresa de pianos e, aos seis anos, o jovem George já compunha no instrumento que aprofundaria. Uma performance de “Prélude à l’Après-Midi D’Un Faune”, de Charles Debussy, pela BBC Symphony Orchestra mudaria a sua vida.
Depois de deixar a escola, alistou-se na Marinha em 1943, mas não esteve em ação na II Guerra Mundial: passou um ano a treinar na ilha de Trindade, nas Caraíbas, onde tocava piano para as tropas nos tempos livres.
Deixou a Marinha em 1947 e, sem perspetivas de carreira, usou o estatuto de veterano das forças armadas para se inscrever na Guildhall School of Music and Drama, em Londres, onde estudou oboé e piano.
Depois de se formar, trabalhou no departamento de música clássica da BBC, tendo chamado a atenção de Oscar Preuss, alto executivo da Parlophone Records, detida pela discográfica EMI, tornando-se assistente deste em 1950.
Cinco anos depois, assumiria a chefia e gravaria discos de comédia para manter viva a companhia, uma das mais pequenas sob a alçada da gigante EMI (até aí, passara da música barroca à música ligeira e ao jazz). Em 1962, quando os Beatles chegam a Abbey Road, Martin era já um produtor de sucesso. Mas a sua carreira mudaria para sempre.
No texto com que homenageia o falecido produtor, Paul McCartney lembra-o: “um [dos momentos] que me vem à memória é a ocasião em que eu levei a canção ‘Yesterday’ para uma sessão de gravação e os rapazes na banda sugeriram que eu a cantasse sozinho à guitarra.
Depois de o ter feito, George disse-me: ‘Paul, que tal se pusermos aqui um quarteto de cordas?’. Eu respondi: ‘Oh não, George. Somos uma banda de rock and roll e não me parece boa ideia’. No seu jeito cordato de grande produtor, devolveu: ‘vamos tentar e se não resultar voltamos à versão a solo’. Concordei e no dia seguinte dirigi-me à casa dele para trabalhar no arranjo.
Ele levou os acordes que eu lhe mostrei e espalhou notas ao longo do piano, colocando o violoncelo na oitava baixa e o primeiro violino na oitava alta, dando-me aí a minha primeira aula sobre como deveriam ganhar voz as cordas num quarteto.
Quando gravámos em Abbey Road, fiquei tão entusiasmado por perceber que a ideia dele estava correta que andei a contar isto a toda a gente durante semanas. É óbvio que a ideia funcionou porque a canção tornou-se uma das mais gravadas de sempre, com versões de Frank Sinatra, Elvis Presley, Ray Charles, Marvin Gaye e milhentas outras”.
Martin faria ouvidos moucos à tensão crescente entre os egos da banda e não é de surpreender que “Let It Be”, o único álbum dos Beatles que por si não foi produzido (e o derradeiro da contagem oficial) é habitualmente visto como uma desilusão – na década passada McCartney levou adiante uma vontade antiga e editou uma versão livre da intervenção de Phil Spector, o produtor original.
Durante o ‘reinado’ dos Beatles, George Martin desempenhou funções de produção em gravações de Shirley Bassey (como o sucesso ‘Goldfinger’, do filme homónimo da saga James Bond), Gerry & The Pacemakers ou Cilla Black.
Após a cisão da banda, continuou próximo de Paul McCartney (os álbuns de maior sucesso deste nos anos 80 têm a sua chancela) tendo estado ligado a sucessos como ‘Live and Let Die’ (1971), ‘Ebony & Ivory’ (com Stevie Wonder, 1982), ‘Say Say Say’ (com Michael Jackson, 1983) e ‘No More Lonely Nights’ (1986).
Produziu quatro álbuns dos America, dois de Jeff Beck e ainda Cheap Trick, Ultravox e até Celine Dion. Durante os anos 70 e 80, os estúdios Air, por si geridos, foram poiso frequente de algumas das bandas mais reputadas da época.
Permaneceu relacionado com a ‘máquina’ Beatles, supervisionando a pós-produção das edições “Anthology”, de 1995, nas quais não pôde estar mais envolvido devido à perda de audição.
Em outubro desse mesmo ano, passou por Portugal (Coliseus do Porto e Lisboa) para dirigir a Orquestra Clássica do Porto num concerto intitulado “Beatles for
Peace”. Em 2006, Martin e o filho, Giles, remisturaram 80 minutos de música dos Beatles para a peça “Love”, uma coprodução do Cirque de Soleil e da Apple Corps (detida pelos membros dos Beatles e respetivos herdeiros) levada a cena em Las Vegas e que suscitou uma banda-sonora homónima no mesmo ano.
“Era como um segundo pai para mim. Guiou a carreira dos Beatles com tanta qualidade e com um bom humor tal que se tornou um verdadeiro amigo meu e da minha família. Se alguém merece a honraria de ‘quinto Beatle’, é o George.
Desde o dia em que nos deu o nosso primeiro contrato até à última vez que o vi, ele foi a pessoa mais generosa, inteligente e musical que tive o prazer de conhecer”, referiu Paul McCartney. Ringo Starr deixou condolências e agradeceu “todo o amor” mostrado por Martin. Yoko Ono, viúva de John Lennon, disse-se “abatida e incapaz de proferir muitas palavras”.
O filho destes, Sean Lennon, manifestou-se “abalado” pela notícia. O produtor Nigel Godrich (ligado aos Radiohead, mas também a um álbum de Paul McCartney) lamentou a morte do “meu herói”, o “o produtor definitivo, um cavalheiro que foi sempre tão gentil comigo.
Ele fez tudo primeiro… e melhor”. As homenagens chegaram de vários quadrantes: dos músicos e produtores Brian Eno e Mark Ronson ao ator Roger Moore (“ele fez o meu primeiro James Bond soar brilhante!”).
Nascido em Highbury, Londres, em janeiro de 1926, Martin cresceu numa família com ligações à música: o seu tio trabalhava para uma empresa de pianos e, aos seis anos, o jovem George já compunha no instrumento que aprofundaria. Uma performance de “Prélude à l’Après-Midi D’Un Faune”, de Charles Debussy, pela BBC Symphony Orchestra mudaria a sua vida.
Depois de deixar a escola, alistou-se na Marinha em 1943, mas não esteve em ação na II Guerra Mundial: passou um ano a treinar na ilha de Trindade, nas Caraíbas, onde tocava piano para as tropas nos tempos livres.
Deixou a Marinha em 1947 e, sem perspetivas de carreira, usou o estatuto de veterano das forças armadas para se inscrever na Guildhall School of Music and Drama, em Londres, onde estudou oboé e piano.
Depois de se formar, trabalhou no departamento de música clássica da BBC, tendo chamado a atenção de Oscar Preuss, alto executivo da Parlophone Records, detida pela discográfica EMI, tornando-se assistente deste em 1950.
Cinco anos depois, assumiria a chefia e gravaria discos de comédia para manter viva a companhia, uma das mais pequenas sob a alçada da gigante EMI (até aí, passara da música barroca à música ligeira e ao jazz). Em 1962, quando os Beatles chegam a Abbey Road, Martin era já um produtor de sucesso. Mas a sua carreira mudaria para sempre.
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