Esterilizações forçadas continuam na Índia, depois da morte de 14 mulheres


Médico responsável pelas operações foi detido, mas acusa a administração regional. “Trataram-nas como gado”, dizem familiares das vítimas.

Os serviços de saúde do estado indiano de Chhattisgarh continuam a contabilizar as mortes de mulheres que foram submetidas a esterilizações forçadas no último fim-de-semana e há já uma nova vítima de um segundo campo na mesma região.


Foram realizadas cerca de 30 intervenções em apenas uma hora num recinto clínico organizado especificamente para o efeito na última segunda-feira, segundo o jornal The Guardian, que cita órgãos de comunicação locais. Para além da morte de uma mulher há mais vinte que foram hospitalizadas, de acordo com o Hindustan Times.

Entretanto, o número de vítimas que morreram na sequência de operações em massa realizadas no sábado ascendeu a 14, segundo as autoridades de saúde estaduais. Várias dezenas de mulheres continuam internadas e é previsível que o número de mortes possa subir.

As complicações surgiram pouco tempo depois de 83 mulheres terem sido sujeitas a esterilizações num campo organizado pelo governo estadual, no âmbito das políticas de controlo de natalidade indianas. O mesmo médico terá operado todas as mulheres em apenas cinco horas, segundo os jornais locais.

As autoridades sanitárias de Chhattisgarh (um estado no Centro do país) prometeram levar a cabo uma investigação e anunciaram esta quinta-feira a detenção de RK Gupta, o médico que operou as mulheres.

Gupta negou qualquer responsabilidade pelas mortes, dizendo estar a ser apenas “um bode expiatório”. “Não apenas eu, mas toda a administração regional é responsável pelas mortes”, disse o médico, citado pelo jornal India Today, que apontou para os “remédios de pouca qualidade” prescritos às mulheres após a operação como a razão para as complicações apresentadas.

À Reuters, Gupta afirmou ser uma “obrigação moral” operar as mulheres. “Se eles puseram 83 mulheres naquele local, é a minha obrigação moral operá-las a todas. Se eu recusasse teria de enfrentar a agitação pública”, argumentou o médico, que garantiu já ter realizado 50 mil intervenções do género na sua carreira.

A polícia descreveu as más condições do local onde as mulheres foram operadas, em que havia cães a passar e teias de aranha penduradas no tecto. Ao ritmo a que as operações foram feitas, cada uma terá demorado cerca de dois minutos, provavelmente nem possibilitando a troca de lençóis ou instrumentos – especialistas garantem que para ser bem-sucedida cada intervenção terá de durar pelo menos 15 minutos.

As famílias das vítimas estão chocadas com a forma como as mulheres foram tratadas e descrevem mortes após um “sofrimento tremendo”. “Disseram que nada lhes iria acontecer, que era uma pequena intervenção”, contou ao Indian Express Mahesh Suryavanshi, cunhado de uma das vítimas. “Trataram-nas como gado.”

Excessos governamentais
Estima-se que tenham morrido 1434 mulheres na sequência destes procedimentos entre 2003 e 2012, segundo dados das discussões parlamentares citados pelo Hindustan Times, o equivalente a 12 mortes por mês. O jornal adverte, contudo, que os números reais devem ser mais elevados.

Estas notícias revelam os abusos das políticas de controlo populacional que vários estados indianos têm levado a cabo nos últimos anos. O segundo país mais populoso do planeta (1270 milhões de habitantes) pode tornar-se o primeiro em 2030, segundo cálculos das Nações Unidas.

O controlo demográfico tornou-se uma das prioridades de sucessivos governos na Índia – o primeiro país a implementar um programa nacional de planeamento familiar, nos anos 1970. Num primeiro momento, o Governo de Indira Gandhi organizou um processo de esterilização maciça que abrangeu 10 milhões de pessoas, na sua maioria homens.

Numa sociedade fortemente patriarcal, as esterilizações masculinas despertaram fúria generalizada, ancorada na crença de que os procedimentos retiravam a virilidade aos homens. Os programas passaram, desde então, a concentrar-se quase em exclusivo nas mulheres. Calcula-se que cerca de 37% de todas as indianas casadas tenham sido operadas, face a pouco mais de 2% dos homens. Só em 2012 foram esterilizadas 4,6 milhões de mulheres, segundo os dados oficiais do Governo.

Para cada estado é fixada uma meta anual de esterilizações que deve ser alcançada pelas autoridades de saúde. O estado de Chhattisgarh (com 24,6 milhões de habitantes), por exemplo, tem de atingir as 180 mil até ao fim do ano. Os responsáveis de saúde recebem compensações monetárias e são fortemente pressionados a atingir as metas. Às famílias são oferecidas compensações avultadas, muito acima do rendimento médio, tornando ainda mais vulneráveis as mulheres mais pobres. No caso de Chhattisgarh, os familiares receberam 1400 rúpias (18 euros), o equivalente a duas semanas de salário.

Organizações como a Human Rights Watch criticam a postura do Governo indiano, “que conta o número de esterilizações como medida do ‘progresso’ sem olhar às circunstâncias”. “É necessária uma reforma total dos programas de planeamento familiar e as abordagens baseadas em metas devem ser eliminadas”, recomenda.

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