Ossos de antiga prisão de Évora dão voz às vítimas da Inquisição
Atiraram-nos para o lixo, sem qualquer respeito pelos corpos já sem vida. É o que contam os esqueletos de homens e mulheres presos pelo Tribunal do Santo Ofício de Évora. Tinham problemas nos dentes e nas articulações – mas a tortura a que eram submetidos não ficou registada no esqueleto.
O castigo era das almas, mas os corpos foram abandonados sem direito a cerimónias fúnebres ou compaixões de últimos instantes. Nos 20 metros quadrados do “quintal da limpeza dos cárceres”, a lixeira da prisão do Tribunal da Inquisição de Évora, 12 esqueletos e 980 ossos desarticulados são hoje a memória última que sobejou da vida de homens e mulheres perseguidos pelo Santo Ofício. Uma equipa de investigadores foi analisar essas ossadas, que datam dos séculos XVI e XVII, e recuperar os respectivos processos acusatórios e determinou que as vítimas terão sido acusadas de “judaísmo”, “heresia” e “apostasia”.
Os restos mortais foram encontrados por acaso, entre 2007 e 2008, durante as intervenções arqueológicas desenvolvidas para a recuperação do antigo Tribunal da Inquisição, edifício que hoje pertence à Fundação Eugénio de Almeida. Ao lado, o templo romano do século I d.C. ergue-se como símbolo da liberdade que teima em persistir. A empresa Crivarque Arqueologia e a Universidade de Évora foram responsáveis pelas escavações no “quintal da limpeza dos cárceres”, onde se encontravam dispersos, entre lixo doméstico, ossos que pertenceram a pelo menos 16 pessoas. Entre 2012 e 2013, o material osteológico foi estudado pela equipa de cientistas do Centro de Investigação em Antropologia e Saúde da Universidade de Coimbra e do Departamento de Biologia da Universidade de Évora, que publicou os resultados em Julho deste ano na revista Journal of Anthropological Archaeology.
“Encontrámos ossos de pelo menos 16 indivíduos [distinguidos pelo osso do fémur esquerdo]. Pelos relatórios arqueológicos de campo, sabemos que mais alguns esqueletos ficaram no local, porque a área onde se encontravam não iria ser afectada pelas obras”, diz Bruno M. Magalhães, da Universidade de Coimbra. A área escavada constitui apenas 11,5% do total do quintal, motivo que leva os investigadores a pensar ser possível encontrar mais restos mortais na área não explorada. “Uma vez que se escavou uma área pequena, é previsível que mais algumas dezenas de indivíduos falecidos nos cárceres de Évora tenham sido atirados para aquela lixeira.”
O que fez os investigadores concluírem que os corpos teriam sido para ali atirados foi a posição em que se encontravam. A disposição dos esqueletos era variável, o que revelou a ausência de cerimónia fúnebre. Uns estavam de barriga para baixo, outros de lado e outros virados para cima; nenhum apresentava qualquer orientação da cabeça relativamente aos pontos cardeais. Além disso, a sua posição relativamente à camada de terra indicava que os corpos não teriam sido sepultados.
“Dos 12 esqueletos recuperados sabemos que um elemento comum a quase todos é que não foi aberta sepultura para a sua colocação. Foram apenas descartados, atirados para aquele local”, diz Bruno Magalhães. “Se eram tapados ou não, não temos dados que nos digam isso, mas penso que seriam, principalmente pelos maus cheiros que existiram no local. Pelo menos uma pequena quantidade de terra seria colocada.”
Depois de analisarem fotografias do local tiradas durante as escavações – nas quais participou ainda Teresa Matos Fernandes, das universidades de Coimbra e Évora, e uma das autoras do segundo estudo –, os cientistas foram traçar o perfil biológico de cada um dos indivíduos encontrados. Os esqueletos pertenciam a 12 adultos, três homens e nove mulheres.
E o que contam os ossos sobre os indivíduos e a vida na prisão? “Sobre as condições de vida no cárcere, os ossos não contam muito. Sabemos que aqueles indivíduos morreram no cárcere, mas nem todas as doenças deixam provas nos ossos. E também não encontramos provas de torturas, como, por exemplo, membros superiores ou inferiores partidos”, diz Bruno Magalhães. “Provavelmente, se o local fosse todo escavado, teríamos outro tipo de provas. Essencialmente, as provas que temos indicam patologia oral, patologia degenerativa articular e não articular, vertebral, alguma patologia infecciosa e traumática, mas que não parecem estar associadas a tortura.”
Notícias do padre António Vieira
Mas neste caso, a literatura veio preencher as lacunas no que a biologia não pôde contar. Nas Notícias Recônditas do Modo de Proceder a Inquisição de Portugal com os Seus Presos, publicadas em 1821, o padre António Vieira ilustra as condições em que eram mantidos os presos no cárcere de Évora, enquanto aguardavam julgamento.
“Nestes cárceres estão de ordinário quatro, e cinco homens; e às vezes mais, conforme o número de presos que há; e a cada um se lhe dá seu cântaro de água para oito dias, (e se acaba antes, tem paciência) e outro mais para a urina, com um serviço para as necessidades, que também aos oito dias se despejam: e sendo tantos os em que conservam aquela imundícia, é incrível o que nele padecem estes miseráveis, e no Verão, são tantos os bichos, que andam os cárceres cheios, e os fedores tão excessivos, que é benefício de Deus sair dali homem vivo. E bem mostram os rostos de todos, quando saem nos Actos, o tratamento que lá tiveram, pois vêm em estado que ninguém os conhece.”
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