A nossa liberdade ofendida
Miguel Torga é escritor e poeta. Humanista. Escreveu no Diário XVI: “ Neste mundo desapiedado e devassado não há mais lugar para o sofrimento íntimo, recolhido, que os bichos podem sentir na toca. Agora já ninguém é dono de si e do seu pudor. Somos públicos e baldios…perdemos toda a densidade humana…” .
Políticos, juristas, jornalistas deviam concentrar-se no pensamento de Miguel Torga. Na sua mensagem. Nós também.
Nada da nossa vida pública, privada e mesmo íntima escapa à volúpia dos mais díspares poderes instituídos ou de facto. Somos, como se disse algures, “homeless”. Debaixo dos tectos e entre as paredes da casa que é a nossa.
A nossa vida pessoal é invadida. Somos perturbados na nossa identidade. Sob os mais diversos e ocultos intentos. Os “guardiães da virtude” espiam-nos. Vigiam-nos. Intrometem-se. Usam a nossa privacidade. Ou arquivam para chantagear mais tarde, ou mais cedo.
A “reserva da intimidade da vida privada”, inscrita na Constituição da República, é rendilhado. A “devassa da vida privada”, punida pelo Código Penal, é miragem. O Estado não é um primor de respeito por esses direitos. Há sempre um “interesse público” (?) que se sobrepõe à pessoa.
Montaram um mundo panóptico descrito pelo filósofo Michel Foucault. Sabemos que somos vigiados. Só não sabemos quando e onde. Por quem. Escrutinam-nos. Censuram-nos. Fotografam-nos. Bisturiam as nossas fragilidades, disfunções e maleitas. Varejam as nossas contas bancárias. Espiam as nossas relações sociais e amorosas. Usam, no momento que lhes interessa, esses produtos contra nós. Vivemos no medo de ter feito isto ou aquilo. Sem nada ter feito.
Escutam as nossas conversas telefónicas. Registam as nossas mensagens (SMS) que arquivam pelo tempo que lhes apetece e convém. Muito para além da lei. Desencantam-nas para nos intimidar.
As escutas telefónicas são o meio mais invasivo e intrusivo que a impotência dos estados inventou para colmatar a sua incapacidade investigatória. Rondam o atentado à dignidade pessoal.
Todos somos escutáveis. Questões são as razões e procedimentos. Por quem.
Em editorial, o director de um jornal revoltava-se há dias por ter sido escutado, sem mais nem menos. Se bem o entendi. Há sempre o pretexto de que não era quem se escutava. Falou com alguém que estava, legalmente, a ser escutado. Escutas fortuitas. O que nunca se explica é por que se armazenam escutas telefónicas que nada têm a ver com a investigação. Não é crime falar com alguém suspeito de crime. Nem a suspeição do último acarreta a suspeição do primeiro.
Não tenho nada contra as escutas telefónicas. Tenho tudo contra as escutas telefónicas.
Nada, quando as leis constitucional e processual são respeitadas com todo o rigor. E os procedimentos. Quando reservadas como impõe a lei. Sempre que são instrumento de aquisição de prova. Quando se investiga. Depois, se absolutamente imperioso, escuta-se. Com autorização judicial fundamentada.
Tenho tudo contra as escutas, quando ocultam e dissimulam a incompetência da investigação. Se escuta e não se investiga. Se escuta “pelo cheiro” e não por suspeitas fundadas. Se deviam ser destruídas, como diz a lei, e são conservadas sabe-se lá para quê. Se invadem a vida privada e íntima sem nenhuma razão legítima.
O anterior procurador-geral da República queixava-se de que havia escutas ilegais. Ouvia “uns barulhinhos no telemóvel”. A ministra da Justiça diz que fala ao telemóvel como fala para um gravador. Como seu uso, não explicou. Mas nós percebemos.
Neste sítio, a nossa liberdade e dimensão humana estão colocadas no primeiro degrau da escala. Depois do último.
Temos direito à liberdade e dignidade dos bichos na toca de que falava Miguel Torga.
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